Quatro e quarenta e cinco.
Da manhã.
É uma boa hora para se estar a fazer companhia ao colchão.
Para mim, é a hora de pôr o pézinho na rua.
E dirigir-me à paragem.
Para variar consigo chegar antes do autocarro.
Dá um jeito do caraças, principalmente quando se quer ir lá dentro.
É uma paragem que foi feita com todo o carinho que um presidente da Junta que se está a borrifar consegue expressar.
Um ferro a assinalar o local e pouco mais.
À falta de banco, o pessoal espera de pé.
De repente, a senhora que está à minha frente desata a correr para o meio da rua.
Grita e esbraceja como se não houvesse amanhã.
Cai e esperneia do mesmo modo.
Eu confesso que antes do primeiro shot de cafeína, devo ter menos actividade cerebral do que um zombie.
De madrugada, o caso pode ser mais dramático.
Ainda assim, a primeira coisa que me ocorreu é que aquilo era um ataque epilético.
A senhora levantou-se, correu novamente em direçcão à paragem e aí desmaiou.
Toda a gente se afastou. Houve até quem desse gritinhos histéricos.
Eu tentei amparar-lhe a queda mas já tinha marcado o 115 e só tinha um braço livre.
A senhora ficou inerte no chão, com a cabeça no meu colo, enquanto eu respondia às perguntas do operador.
Entretanto chega o autocarro.
Nem uma daquela dezena de pessoas que ali presenciou a cena se dignou a dizer o que quer que fosse.
E o único olhar que dirigiram foi em direcção aos degraus do autocarro.
São coisas que me tiram do sério.
Quando o autocarro se afastou, é bem possível que tenha rogado pragas a cada uma delas.
É mais do que provável que tenha ofendido a mãe de todas.
Não me lembro.
Já lá vão 8 ou 9 anos.
Hoje, na estação, uma situação semelhante.
Uma senhora sentiu-se mal e perdeu os sentidos.
Houve de tudo.
Pessoas de telemóvel em riste.
Pessoas a irem chamar o segurança.
Pessoas a virem com água com açucar.
Pessoas a fazerem ventinho com lenços de papel.
Pessoas que acharam por bem, simplesmente, ir respirar para cima da senhora.
Eu, optei por não mexer um músculo.
Acho que ali, mais um dedo que fosse, só atrapalhava.
Fiquei só a observar.
E no meio do corre-corre, reconheci uma das pessoas que estava presente naquela paragem de autocarro.
Toda ela era aflição.
Já lá vão alguns anos, mas quase de certeza que era ela.
Quero acreditar que sim.
Porque acredito que andamos cá para algo mais do que trocar oxigénio por dióxido de carbono.
Porque sei que o tempo passa por nós, e muda-nos.
Por fora, mas certamente por dentro também.
E invariavelmente, ajuda a tornarmo-nos pessoas melhores.
[Ou isso ou sou eu que sou um "sonhador".
Também pode ser.]